quarta-feira, agosto 27, 2008

Colosso

Sta. Apolónia

Dez e meia da manhã e eu a ler. Eu a ler com a mania que sou culta ou que o vou ficar. E o marcador que não avança, sempre a mesma página, a página quarenta e seis que insiste as frases que não se alteram. Há mais gente a ler nesta sala de espera da estação de Santa Apolónia. Há mais gente culta ou a fingir, como eu. Mas o meu marcador diz Lobo Antunes, eu a ler Lobo Antunes é outra coisa, é mais qualquer coisa do que o-não-sei-quantos que não se consegue pronunciar, mas que veio referido naqueles destacáveis intelectuais das sextas-feiras.


- A crítica era muito boa. Não sei quem é, mas a crítica era boa.


E a crítica era de outro-não-sei-quem que nasce e morre assim.
Mas há quem não leia nesta estação que findou no tempo e alguém tentou ressuscitar num azul ridículo de infância. Há um mendigo, daqueles com o cabelo quase floresta que insulta o segurança que o tenta expulsar.


- Preto da merda, só saio daqui com a polícia, não és ninguém para me tirar daqui.


E as gentes riem-se. Aquelas de livro na mão. E continuam a ler. Já ninguém quer saber, já ninguém quer saber de nada nem sair muito do casúlo que construiram para não terem de viver muito tempo de mãos dadas com o mundo lá fora. Pouco interessa o mendigo, a falta de segurança, o preto que é insultado e se eclipsa com medo. Mais vale mergulhar no-não-sei-quantos e continuar a viajar por um Marte qualquer.
Esperam comboios na estação, ou a estação pelos comboios, nunca percebi muito bem quem o quê. Há mil paragens que assobiam poemas aos meus sentidos. Há um Verão a acontecer aqui tão perto. Este cheiro traz-me a infância, o meu avô vindo dos estaleiros de Viana do Castelo. E eu tão nova e já a memória de infância, eu já com tempo para me recordar.


- És um colosso, minha Querida.


E eu com a mania que sou culta, que leio Lobo Antunes, sem perceber muito bem o que quererá isto dizer. Eu a pensar nesta mania que as pessoas têm de que pertencemos uns aos outros: minha.
E eu tua, se calhar. O areal infinito, a prisao às palavras, à memória das coisas.
São agora onze e meia e a página quarenta e sete.


- Adoro-nos.


E um Verão que acontece. Um Verão que acontece aqui tão perto.


3 Comentários:

Às 1:46 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

"Mesmo que pudesse dizer tudo,não podia dizer tudo, e está bem assim."

Adília Lopes


*
*




(locais de embarque e desembarque terão que ser sempre neutros para não nos comovermos...
Pensei eu há uns dias atrás)

 
Às 10:19 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

Eu também te adoro, minha Querida..

 
Às 12:20 da manhã , Blogger AM disse...

Belo texto.

 

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