Nunca ninguém
"Faz-me falta um verso onde lembrar não cabe..."
Viagens longas entre as esquinas. As vozes cruzavam-se, quase hora de ponta, correndo mais depressa que o próprio timbre, tentando chegar uma primeiro que a outra. Embora amiga, concorrente.
- Deixa-me falar primeiro.
E depois o pensamento, o meu.
- Eu percebo o teu ponto de vista, mas…
Também queria ter sabido que “mas” poderia sair daquele raciocínio, mas…
- Mas nada, é isto que te estou a dizer, não há mas nem meio mas.
Se calhar não há mesmo.
De súbito o tema traição.
Silêncio.
Mais silêncio.
Os vidros embaciados da respiração excessiva. Dos medos, dos fantasmas perto da pele.
Eu calada. Como sempre.
De repente tu ainda entre cada palavra e casa ausência. Entre o espaço que finjo ser, o silencio que não quebro.
Por ser teu também.
- Mas… calou-se tudo?
Olho-te e só eu sei.
Quando adormeces,
Nascem mil luas
No céu
E contas-me estrelas
De outras noites tão belas, na pele.
E a vontade aperta.
Fugir é certo,
Sentir-te mais perto,
Há tanta música escondida em ti
Agora.
Que desejos te arrancam ao chão?
Que vontades te fazem voar?
Há um sitio em ti
Para quem ainda não tem lugar.
Rua dos Mercadores fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga...
José Luís Peixoto