quarta-feira, março 14, 2007

Claro que dói, porra.




"Tenho aflição por toda a ausência não anunciada. Vou-me sentar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.


Fazer de conta que estou a esperar."


Daniel Faria

Há dias falava-te de mim, e tu de ti, há dias ou há meses, talvez anos e neles sempre as mãos vazias. Falava-te, meu amor, de quando as asas não dormiam e eu vestia o infame tormento da tua ausência das noites em que só a memória do teu cheiro ficava. E era só mais uma noite, só mais uma espera, feita do tempo em que não vinhas.

Hoje chegaste. A casa quieta. Já tinhamos saído para o mundo e tu tudo de novo nos meus braços. Esse abraço forte e fugidio que, sem eu saber, ainda é o cheiro da minha pele. Chegaste e eu não quero. Quero, mas não consigo.

Esqueço-te. Finjo. Porque me dóis, porque me és urgente e eu não posso saber de ti. Sei demais. Sofremos juntos o mesmo Adeus.
Vai.

Por favor.



domingo, março 11, 2007

Nunca ninguém

"Faz-me falta um verso onde lembrar não cabe..."



Viagens longas entre as esquinas. As vozes cruzavam-se, quase hora de ponta, correndo mais depressa que o próprio timbre, tentando chegar uma primeiro que a outra. Embora amiga, concorrente.
- Deixa-me falar primeiro.
E depois o pensamento, o meu.
- Eu percebo o teu ponto de vista, mas…
Também queria ter sabido que “mas” poderia sair daquele raciocínio, mas…
- Mas nada, é isto que te estou a dizer, não há mas nem meio mas.
Se calhar não há mesmo.
De súbito o tema traição.
Silêncio.
Mais silêncio.
Os vidros embaciados da respiração excessiva. Dos medos, dos fantasmas perto da pele.
Eu calada. Como sempre.
De repente tu ainda entre cada palavra e casa ausência. Entre o espaço que finjo ser, o silencio que não quebro.
Por ser teu também.

- Mas… calou-se tudo?

Nunca ninguém disse nada

sexta-feira, março 02, 2007

Olho-te e só eu sei.

Quando adormeces,
Nascem mil luas
No céu
E contas-me estrelas
De outras noites tão belas, na pele.
E a vontade aperta.
Fugir é certo,
Sentir-te mais perto,
Há tanta música escondida em ti
Agora.

Que desejos te arrancam ao chão?
Que vontades te fazem voar?
Há um sitio em ti
Para quem ainda não tem lugar.
Pedro Abrunhosa

Rua dos Mercadores

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido

com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro

do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga...
José Luís Peixoto